Semáforo vermelho. Escutava a canção de Antony and the Johnsons que passava a Radar. Olho para a esquerda, para a papelaria dos indianos, e apanho a empregada mais jovem, filha dos donos, do lado de lá do balcão a cozer um lenço de um lindo verde garrafa com bordados cor de prata. Ela levanta as pálpebras pestanudas e sorri-me. É sempre o que fazemos, quando por lá passo a pé e a encontro à porta, como se por estupidez espontânea temêssemos não entender o "olá" na língua de cada uma...
Uns minutos à frente, já era uma música do "Automatic for the people" dos REM que a mesma rádio propunha. Paro porque um grupo de jovens trajados de sapatilhas e calções atravessa a rua a passo de corrida. Fiquei com inveja do jogging deles. Ou antes, do voluntarismo que exibem. Correr é mesmo o desporto mais barato e acessível. Desarma qualquer preguicite disfarçada de desculpa. Depois da inveja, chega-me a consciência pesada. O que me vale é que sou hedonista e, por sorte, gosto de dançar, e danço. Vale-me isso e o autocarro que persigo para me distrair do mea culpa. Pára na diagonal junto à paragem, justamente para impedir que o ultrapasse. Também é certo que quando não o fazem, secam até que algum condutor generoso os deixe voltar a alinhar-se na faixa de rodagem. Típicos ambos os casos. Insulto-o em silêncio, enquanto me ferve o sangue nas veias. Alertam-nos para os perigos de uma alimentação desequilibrada, para a falta de exercício físico, mas esquecem-se que a falta de civismo é muitas vezes o catalisador que falta para o colapso das coronárias.
... Entretanto já estacionei e aguardo que a aula que precede a minha termine. Quase a chegar ao pé de mim, um senhor rosadinho e com andar pouco articulado levanta o dedo indicador até junto dos lábios fechados a pedir-me cumplicidade e, alertado pela música, aponta de seguida para a janela que deixa ver uma nesga da coreografia de flamenco. Quando chega ao pé de mim, ainda me pergunta: "É chinesa ou indiana ela (a professora)?
Respondo-lhe que é portuguesa. Ele muda logo de conversa e, a olhar para a esquina, onde um painel de azulejos anuncia que ali começa a Rua Francisco Lázaro. Diz-me: "Ninguém o parava!" Reparo que no painel está também desenhado um atleta a correr... Googlei o nome e sei agora que Francisco Lázaro era maratonista e morreu dopado, naquela que foi a primeira participação portuguesa nos Jogos Olímpicos, em Estocolmo 1912 (Suécia). A autópsia apontou desidratação e insolação como causas da morte, o que foi relacionado com o facto de ter coberto o corpo com sebo... Mais tarde descobriu-se que foi vítima de "emborcação", uma mistela de essência de terebintina (anestésico) e ácido acético (vinagre), usada como um complemento do treino.
Ainda não sabia disso quando fiquei a especular sobre o triste que talvez se sentisse o senhor rosadinho para recorrer àquele doping - álcool.
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