martes, 22 de septiembre de 2015

A cela depois do naufrágio. A morte em vida depois da cela.

Como se estivesse morto: 
( testemunho de Abdullah Kurdi, pai de Aylan Kurdi )
“Deixámos Damasco pouco depois do início da guerra na Síria. Vivíamos no bairro curdo de Rukn al-Din e eu trabalhava como barbeiro. 

A situação na cidade tornou-se cada vez mais perigosa. Decidimos partir para Kobane onde a minha mulher e eu trabalhávamos na agricultura. Tentei a minha sorte em Istambul numa fábrica têxtil. Doze horas por dia eram passadas na fábrica e à noite dormia numa cave que o dono da fábrica fechava do lado de fora. O salário enviava-o para Kobane para a minha a família. Foi assim durante três anos até o Estado Islâmico ter tomado Kobane em 2014. Com Rehan, a minha mulher, Galib e Aylan, os meus filhos, e milhares de outros habitantes fugimos. Pela primeira vez a minha mulher disse: “temos de abandonar a Síria”, antes recusara sempre.
Viemos para Istambul onde procurei um trabalho na construção civil. Carregava 200 sacos de cimento escadas acima, onze horas por dia. O nosso quarto custava 400 liras turcas por mês. Durante 5 meses a minha irmã, que vive há 25 anos no Canadá, pagou-nos a renda. Pedimos asilo ao Canadá, mas este foi-nos recusado, escolhemos então ir para a Alemanha onde o meu irmão vive, em Heidelberg, num centro de refugiados. Tentamos ir por terra, mas a polícia turca deteve-nos na fronteira com a Bulgária. A única opção que nos estava era o mar. A minha irmã deu-me os 4 mil euros que entreguei aos traficantes turcos e sírios. No nosso barco a motor iam 13 pessoas e parecia ser seguro. O capitão disse: “a viagem dura apenas dez minutos”. Podíamos ver Kos. A água estava calma, mas poucos minutos depois tudo se alterou. Veio uma onda e virou o barco, era de noite e não via a minha mulher e os meus filhos. Mas ouvi a minha mulher, as suas últimas palavras foram: “Abu Galib, pai de Galib, cuida das crianças”. Não as consegui segurar. Agarrei-me ao barco. Um dos que iam comigo conseguiu alcançar a costa e chamou a polícia. Passei a noite numa cela e no dia seguinte pediram-me para identificar a minha família. A minha amada mulher Rehan, Aylan, o menino que sorria sempre, e Galib que nunca parava quieto. 
Enterrei a minha família em Kobane e vivo na casa destruída do meu sogro. Não há infra-estrutura, há pó por todo o lado, os corpos dos mortos continuam debaixo das ruínas. O cheiro é insuportável e os insectos picam-nos à noite. Não há medicamentos, não há leite para as crianças, não há quase água.
Nunca mais deixarei Kobane, quero estar perto da minha família, mesmo que a única coisa que tenha deles seja roupa.
É como estar morto em vida”.




Os instantes em que pensamos que pode ser o fim têm a natureza de um garrote que se aperta desgarrado. Pudemos sobreviver-lhes. Percebemos melhor a angústia alheia.

lunes, 7 de septiembre de 2015

O sangue sírio que carregamos


A História que me contaram era, sem cerimónias, maniqueísta e nada laica: os romanos (subentenda-se cristãos) eram, grosso modo, os bons e os muçulmanos, sarracenos (subentenda-se islamistas) eram os maus!

Isto, apesar de a ocupação muçulmana na Península Ibérica ter permitido/ convivido com a continuação de práticas cristãs, ao contrário do que sucedeu mais tarde, quando se expulsaram os mouros do mesmo território!

A única forma eficiente de combater os efeitos nefastos da religião (qualquer uma) é a educação!

Não falo dessa educação que recebi já após o 25 de Abril, que dividia os povos entre bons e maus! Recordo-me de uma certa professora (que não enxergava mais além) conceder que “apesar de tudo”, a presença mourisca deixou coisas boas, ao nível da matemática, da estética, …, mas a mensagem a bold era a de que se tratavam de povos invasores, com práticas diferentes, logo (e muitas vezes só por isso) indesejáveis.

Espero que não seja esta a versão que agora se escuta nas salas de aula!

Os novos “invasores”, aos olhos de muitos, parecem ser os refugiados sírios! Que ora sacodem o pó da caridade europeia, ora agitam a nacional estupidez (que fala todas as línguas), muito fecunda sempre que se constata que o mal dos outros derruba todas as fronteiras.

Queremos sempre histórias que apontem o dedo aos bons e aos maus, queremos isolá-los, classificá-los, circunscrevê-los a uma nacionalidade e a uma geografia. Mas entender o mundo  obriga a um exercício diferente, mais descomprometido, menos romântico, mais verdadeiro.

Agora pelos sírios... Por tantos outros... Por nós.

Os mesmos sírios que descendem, por ventura, dos marinheiros e comerciantes fenícios, que em tempos andaram por cá. Acreditando que não se limitaram apenas a fazer comércio, é provável que tenhamos sangue sírio nas veias… Seguramente que o temos a pesar na consciência.