O protagonista da minha memória é um senhor de uma certa idade. Gosto de pensar que se trata de um octogenário, talvez por gostar da sonoridade do número oito e de o desenhar entrelaçado e redondinho, a provar que as histórias se interligam e que podem começar no mesmo ponto em que terminam. Na verdade a minha acontece assim: eu saía do lugar para onde o meu octogenário entrava, ou então entrava eu para o mundo de onde ele saía. Pouco importa por agora...Vi o meu octogenário contrariada, como quando se senta alguém ao meu lado no mesmo banco do autocarro e me obriga a partilhar, a ajustar-me no meu canto, a escapar da minha abstracção e a pedir licença para sair. Desagrada-me pedir licença para sair. Vi-o do outro lado da porta de vidro, daquelas que democraticamente abrem para os dois lados, bamboleiam dependendo, ora do desabafo dos que a empurram em fuga, ora da convicção dos que a puxam para si, determinados a entrar, muito mais do que a sair. O meu octogenário alcançou-a antes que eu pudesse decidir. Ele decidiu puxar a porta de vidro. Decidiu isso e decidiu sorrir-me com os olhos, com a face toda e com as mãos que me cediam a passagem, sem pressa nenhuma. A ausência de pressa de quem valoriza a vida, com a autoridade de a viver efectivamente. Se não fossem as convicções sociais, a vergonha, a estupidez, ou outra desculpa menos óbvia, o que teria feito era dar-lhe um beijo. Não me lembro de melhor forma de retribuir aquele momento quentinho que me impediu de continuar contrariada... Em vez disso, disse-lhe um vazio obrigada, mais ou menos desmaiado num sorriso, e adiei para depois os olhos humedecidos e a felicidade mais escancarada. Por essa altura ele já estava do outro lado da porta e ela já se tinha fechado. Não o voltei a ver. Mentira! Acho que o reencontrei porque poderia muito bem ser ele o octogenário que se mudou para o meu prédio e uma semana depois tocou à minha campainha. Abri a porta e lá estava ele com um cesto de molas de roupa de muitas cores diferentes. Ofereceu-mas a sorrir com os olhos e com a face toda. Talvez desconfiasse que eram molas coloridas os meus brinquedos preferidos quando ainda só gatinhava atrás deles e aprendia que as cores tinham nomes. Sempre que me cruzo com este meu octogenário no prédio ou na minha rua, sorrimos os dois. Eu regresso à recordação do meu outro octogenário e da porta de vidro. Imagino que afinal vou conseguir dar-lhe um beijo como quem termina o oito mesmo no ponto em que o iniciou. Penso depois que devo ter desenhado vários oitos imperfeitos, que não terminam de acontecer. Penso que um sorriso é quase um beijo por terminar, por acontecer.