A memória é truculenta: retém o que interessa e o que não
interessa, mas também é capaz de deixar escapar coisas que gostaríamos de
perpetuar.
Quando vejo uma exposição, assalta-me sempre alguma angústia
que antecipa os detalhes que irei esquecer, contrariada. E se o filtro que baliza
a memória me deixa lembrar que é sempre da esquerda que a luz espreita em todos
os quadros de cenas domésticas de Vermeer que vi; do sobressalto que senti
quando finalmente se agigantou o “David” do Miguel Ângelo, depois de uma
obediente espera; da comoção inesperada que as esculturas de Rodin me causaram
(foi o último museu que visitei em Paris e é dele que melhor me lembro); da
sucessão de tapetes dos corredores do Vaticano, que vi a correr (literalmente)
para conseguir chegar a tempo de babar a olhar para o teto da Sistina; que a
impressão maior dos impressionistas é a intranquilidade latente de tudo o
que posa para o pintor… mas esse filtro também me priva do muito que queria
guardar.
Socorro-me com a escrita, domadora dos caprichos da memória.
Assim, depois de visitar no MNAA a “Colección Masaveu. Grandes Mestres da
Pintura Espanhola Greco, Zurbarán, Goya, Sorolla”, registo:
José de Ribera atreveu-se a olhar para a vida como ela era:
pintou o “Bêbedo” quando a maioria dos seus contemporâneos retratava santos de
olhar suplicante em direção ao céu.
Os olhos de Cristo parecem cortados com espadas em “Jesus é
despojado das suas vestes” de El Greco.
Que o melhor do Barroco está nos desenhos irrepreensíveis
dos têxteis faustosos como o que cobre “Santa Catarina” de Zurbarán.
Que o meu avô iria apreciar as cenas pastoris de Pedro de
Orrente.
Já eu fiquei particularmente encantada com as velas furiosas
em contracena com a luz do Levante, nas marítimas de Sorolla, e com o
protagonismo da música e da dança nas telas de Romero Torres.